(Por Maria Mineira*) Denominado Capela Velha, esse lugar é cortado pela estrada que liga São Roque de Minas à cidade de Bambuí. O botânico naturalista francês, Saint-Hilaire, por volta de 1820, quando passou na Capela Velha em sua viagem às nascentes do Rio São Francisco escreveu no seu diário:
(...) A pouca distância da fazenda do Geraldo passei diante da capela de São Roque, onde um padre vem de vez em quando celebrar a missa. A capela fica isolada no alto de um outeiro e é feita de madeira e barro, com paredes sem reboco, e seu estado era miserável. Ao lado foram construídos uma casinha e um rancho, para abrigar os que vêm assistir à missa.Há muito tempo, ali havia uma pequena mata de grandes árvores reunidas em poucos hectares. Os antigos afirmavam que a cidade foi instalada lá. Pela dificuldade do acesso à água, foi transferida aqui para baixo, onde hoje se encontra.
Cresci ouvindo histórias de assombração, acontecidas naquele local. Muitos comentavam sobre uma luz vermelha que vinha do céu, à noite. Ouvi também sobre a boiada fantasma. Outros falam de uma árvore que se originou quando enterraram ali uma escrava benzedeira. A cruz de um galho verde brotou se transformando na árvore mais alta daquele lugar. Conta-se que árvore assombrada se dobra por terra ajoelhando-se toda sexta-feira de lua cheia.
Movida pela curiosidade comecei a entrevistar antigos moradores e soube de fatos interessantes. Aqui, a narrativa do senhor João, de 70 anos que preferiu não se identificar:
Indesde qui ieu era mininim piqueno ieu escutava o povocontá esse causo de sombração. Lá perto di casa memo, tinha uma moitinha de bambu qui balangava as fôia memo semventá. Ieu via isso, mais nunca fui minino acismado não. Tanto qui crisci sem incomodá munto cum esses causo de arma penada.
Certa veiz, ieu já divia tê uns vinte ano, morava na Varge Grande. Nessa época ieu arrumei uma namoradinha que moravamêi longe. Todo fim de semana ieu ia na casa dela e pá mode chegá lá tinha que passá na estrada da Capela Véia. Meus irmão tudo ficava mi acismano, dizeno qui ieu ia vê arma dôtro mundo, lubisome, boiada assombrada...
Ahh, se um cabocrin invocado cum uma moça bunita ia alembrá de tê medo de sombração! Ieu ria inda falava preles assim:
—Si ieu vê arma penada ieu tiro as pena dela, passo uma rastêra, inda jogo na puêra da istrada.
Ieu passei muntas vêiz andano di noite naquela estrada. Até a minina qu’eu namorava ficava cum medo de ieu ir simbora suzim. Num dia que tava armano uma chuvona braba inté o pai dela disse:
—Ô João, envém chuva, ispera a chuva passá ô intão posa aqui e dexa pá imbora amanhã cedo.
—Não sinhô, meu sogro. Num tenho medo de nada, não!
A minina inda tentô fazê ieu ficá, mas ieu aproveiteipá rastá uma malinha emostrá minha corage.
—Ô minha frô, num picisa tê coidado comigo! Tem perigo de nada, não! Num tenho medo de chuva e nem de sombração.
Dei um abraço na moça, dispidi do povo da casa, inda tomei um golin de cachaça qui o pai dela mim deu, dispois cacei o rumo de casa...
Ieu andava dipressa, a distança até minha casa era de umas duas légua. Os curisco riscava o céu crariando a estrada. Os truvão quais me dexava surdo. Foi nessa hora quando um dos raio crariô o caminho qui ieu reparei qui tinha mais gente pru perto...
Ieu tava duma banda da estrada e na outra banda avistei arguém. Ieu nunca tinha visto pessoa feito aquela nessas redondeza. Tavamêi longe, mais deupávê qui se tratava de uma muiê. Ela usava um vistido escuro quais rastano no chão, mais quando mudava os passo dava pá vê umas canela fininha e uns pé discarço. Carregava um punhado de imbornar chei de trem nos ombro, ês paricia tá munto pesado.
Ieu andava de cá e ela de lá da estrada, nóis nem si oiava. Os dois andava depressa modi num pegá chuva. Acabei ficanomêi sem graça, ieu num tava carregano nadica e era uma vergonha um home dexá aquela veiinha carregá tanto peso nos ombro.
Travessei a estrada e pedi pá ajudá ela a levá arguma coisa. A muié nem tirô os zoios do chão, mais rancô um dos imbornar dos ombro, me entregô e continuô a andá dipressa.
Minha Nossinhora! Ieu nunca tinha carregado trem tão pesado! O peso daquilo qui ela levava nos ombro quais qui me discaderô! Custei a levantá o peso do chão. Agora ieu tinha qui guentá. Quem mandô ieu oferecê pá mode carregá, né memo?
Cuntinuemo a andá... Ieu e a véia isquisita de rôpa preta. Cada um dum lado da istrada. Ieu tava froxim! Num guentava mais aquele saco de trem nas costa. Pu resto ieu já tava é rastano aquilo chão afora. Cê besta de trem mais pesado, sô! Paricia um saco de chumbo! Pió era qui a muié tinha munto mais peso nos ombro e num diminuía o passo. Ieu de cá e ela de lá... Im poco tempo nóis feiz a curva e já entremo na istradinha qui travessava a Capela Véia.
Vô fala um trem procê, Sá moça: O qui sucedeu ali, ieu nunca mais qui sisquici na vida. Di repente, bem no meio da istrada a véia parô... Sem mi oiá, ela acenô cum uma das mão chamano ieu pa mais perto. Ieu inocentim de tudo, achei qui ela às vêiz quiria prosiá mais ieu.
De repente ela estendeu o braço pámode pegá o imbornar dela qui ieu tava carregano. Ieu besta inda priguntei pá onde qui ela ia, mode quê ali pru perto num tinha casa. Num sei se os ripio de frio era da chuva que caía em riba di mim, ou se me deu um farta de coragi de chegá mais perto daquela criatura. Ieu parado nomêi da estrada e ela me acenano pra ieu chegá mais perto.
Numa hora o clarão dum relampo bateu bem im riba de nóis. Aí, nesse prazim ieu pude vê a cara dela, si é que podia chamá aquela ossaiada de cara. Ieu vi foi uma cavêra! Juro qui foi! Ieu num tava tonto, não! E o braço qui ela istendeu pá mode pegá os trem era só osso tamém. As mão, os dedo! A criatura intêra era um esqueleto vestido de preto! Peguei cum tudo quanté santo qui ieu cunhicia. Ieu num era bem chegado numa reza, mais na hora do aperto a gente reza até sem sabê.
Ieu rezano e tremeno, inté mijano pás perna abaxo, vi aquela muié de osso tacá os trem dela na costa, subi no barranco e sumi mata adentro. Nunca mais fui home de passa suzim ali, nem di noite e nem di dia. Nunca mais abusei nem fiz graça cum arma penada, luz vermêia. Isso acunticeu de verdade, ieu vi cum esses zoios qui a terra há de cumê.
*Maria Mineira é professora e escritora, moradora de São Roque de Minas, na Serra da Canastra