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quinta-feira, 12 de dezembro de 2019

Eira, beira e tribeira: o mito da divisão social pelo telhado

(Por Arnaldo Silva) Quem não tem eira e nem beira é o tipo que não tem onde cair morto. Essa expressão é bem antiga. Tem origens em Portugal, na Idade Média. Ao contrário do que costumamos ouvir, ver vídeos e ler em artigos afirmando que essa expressão “nem eira e nem beira”, e tem gente que acrescenta até “tribeira”, era a forma de divisão social entre pobres e ricos. 
          Na expressão original, Medieval, nunca foi esse o significado de “nem eira e nem beira”. Aliás, essa expressão de divisão social entre pobres e ricos se limitar a simples adornos em telhados é invenção brasileira, difundida por Guias de Turismo pelo Brasil afora. (na foto acima de Nacip Gomêz, detalhes no telhado de uma construção colonial em Lavras Novas, distrito de Ouro Preto MG)
          Quem for para nossas cidades históricas e fazendas centenárias, se atente aos suntuosos palacetes, sobrados e casarões, com suas portas e janelas enormes, bem pintados, cômodos espaçosos e todos mobiliados com moveis entalhados artisticamente em madeiras nobres e até importadas da Europa. Isso porque seus proprietários tinham dinheiro, fazendas de gado e culturas diversas, minas de ouro e outras propriedades. Por isso tinham condições de construírem casarões, sobrados, palacetes e casas grandes de fazendas. (na fotografia acima do César Reis, uma rua da cidade histórica de Tiradentes com seu belo casario colonial com as ditas eira, beira e até tribeira)
          Agora, compare as construções dos ricaços medievais e coloniais, com as moradias dos colonos, trabalhadores e escravizados, ou seja, dos pobres em geral que trabalhavam para esses ricaços. Obviamente, não serão simples adornos nos telhados que dirá quem é pobre e quem rico. (na foto acima de@arnaldosilva_oficial, uma rua em São Bartolomeu, distrito colonial de Ouro Preto. Percebe-se a simplicidade das construções, suas portas e janelas, mas as casas tem as ditas eira, beira e tribeira no telhado)
Ostentação visível
          A ostentação dos ricaços do Brasil Colonial e Imperial eram visíveis, como, por exemplo, na quantidade de portas, janelas e cômodos dos casarões e sobrados. Quanto mais portas e principalmente, quanto mais janelas tinha um casarão, mais rico e poderoso era seu proprietário. Isso é fato. Compare as portas e janelas dos casarões coloniais com as casas simples do povo, do Brasil Colônia e Imperial.
          São construções suntuosas, imponentes e luxuosas com dezenas de portas e janelas, com nítida demonstração de riqueza, ostentação e poder para a época. Alguns tinham centenas de janelas como o casarão da Fazenda Santa Clara em Santa Rita de Jacutinga MG (na foto acima do Rildo Silveira)
          Essa imponente construção possui 365 janelas, uma para cada dia do ano, 54 quartos, 12 salões e 3 cozinhas, além de capela, torre com mirante, senzala e masmorra. Todos os cômodos mobiliados com os mais requintados e artisticamente bem entalhados móveis da época.
O que é eira e beira
          Para entendermos melhor essa expressão, temos que entender o que era uma eira e uma beira. A expressão sem eira e nem beira tem origem em Portugal, se popularizando no Brasil com a chegada em massa de portugueses.          
           Em Portugal, uma eira é uma parte do terreno de uma propriedade rural nas aldeias portuguesas, geralmente em frente a Casa Grande, em terra batida, lajeada ou cimentada. Na eira, cereais e grãos eram esparramados no chão, limpados, secados, por fim, armazenados e vendidos para consumo. Em outras palavras, é o mesmo que um terreiro, onde costumeiramente são secados grãos de café, arroz, feijão, etc. (na imagem acima do Sérgio Mourão/@encantosdeminas, temos uma eira ou seja, um terreiro de uma beira, para secagem de grãos, no caso, café)
          Para se ter uma eira, obviamente tem que ter uma beira. Em Portugal, uma beira era a divisão territorial desde a Idade Média até o século XVIII. As divisões em eiras foram substituídas posteriormente por comarcas e províncias. O país era dividido em seis beiras (Beira alta, Beira Baixa, Beira Litoral, Beira Interior e Beira Transmontana). Seria o equivalente a seis estados, hoje.
          Com a mudança para comarcas e províncias, beira continuou a existir, mas para definir extensões territoriais de cidades e aldeias portuguesas. No popular, eira passou a ser usada para definir os grandes donos de terras das cidades e aldeias portuguesas. Ou seja, quem possuía terras, com casa, bens e empregados, tinha uma beira.  Era o que chamamos hoje de grande produtor rural.
          Além disso, beira passou a ser o nome de uma extensão do telhado das casas que servia para proteger a casa da chuva, evitando infiltrações. Pelo menos essa beira, tanto pobre, quanto rico podia ter em suas moradas, já que são simples extensões de um telhado. As novas construções de hoje tem as beiras de fundo e laterais com calhas e a beira frontal, já nem existe, se transformou em varanda. (na imagem acima do Rildo Silveira, na Fazenda Santa Clara em Santa Rita de Jacutinga MG, podemos perceber a eira e beira no telhado. Tanto rico, quanto pobre, podiam ter esses detalhes no telhado)
          Portanto, quem tinha uma eira, que é um terreiro de secagem da produção da beira, uma propriedade rural, era rico, dono de casas, cavalos, gado, tinha vários empregados, etc.
          Como podem notar, a expressão portuguesa da Idade Média “fulano não tem eira e nem beira”, não tem nada a ver com adornos existentes nos telhados das casas do Brasil Colônia e Imperial. Essa expressão é portuguesa e não tem nada a ver com a explicação que são passadas por Guias e demais pessoas. Eira e beira nunca foi fator de divisão entre pobres e ricos. Essa “estória” que casa de rico tem eira, beira e tribeira e de pobre nem eira, nem beira e talvez uma tribeira, é só besteira.  
          Na real interpretação desse ditado popular, em Portugal, simplesmente significa que quem não tinha uma grande propriedade de terra e nem um terreiro para secagem de grãos, era pobre. Para ter eira e beira, obviamente, tinha que ser rico. Mas para ter fazer adornos decorativos no telhado, nem tanto.
Eira e beira e até tribeira no Brasil?      
          Há décadas que a “estória” que ricos construíam suas casas com eira, beira e tribeira e o pobre, sem eira e nem beira, apenas com tribeira, é contada, apresentada em vídeos, em artigos e reportagens como se fosse verdade e popularizou-se graças aos Guias de Turismo pelo Brasil. (na fotografia acima de Sueli Santos, um casarão colonial em Ouro Preto MG)
          Não é e nunca foi. Mesmo sem ter nenhum fundamento histórico e muito menos sentido, definir o status social de uma pessoa, baseado em simples adornos no telhado, é no mínimo questionável pelo mais simples leigo no assunto. 
          Existem dezenas ou até centenas de ditados populares em Minas Gerais, durante o Ciclo do Ouro, nos séculos XVIII e XIX e sempre ouvimos explicações dos Guias de Turismos sobre esses ditados. A ideia é mostrar como surgiram essas expressões. A maioria dos “guiados” desconhecem pouco a história, nem percebe que várias “explicações” dadas não tem lógica e nem fundamento histórico. Pior ainda, muitas dessas expressões já existiam em Portugal bem antes do descobrimento do Brasil.
          Tentam explicar o surgimento de expressões populares, superstições e senhas, com explicações duvidáveis, ao menos para quem não tem muita afinidade e pouco conhecimento de história. Além de não ter fundamento, criam outra que nem existem ou existiram.
          É a tal tribeira. Eira e beira sim, já mostrei acima, mas tribeira? Pesquisei em dicionários, livros de história e não encontrei essa palavra. Quem pode dizer o que é isso é só mesmo o inventor dessa palavra. A única definição que existe é a clássica dita pelos Guias de Turismo que tribeira seria a terceira camada mais alta, acima da eira e da beira. Mas na história real, essa palavra não era usada. Só mesmo quem criou essa palavra para explicar sua origem. (na imagem acima do Sérgio Mourão/@encantosdeminas, temos uma casa simples no Quilombo dos Bois, em Angelândia MG, com eira e beira e até com calha)
          Adornos em telhas para proteger a parede de infiltrações existiam e existem até hoje, sejam um, dois, três, quatro, cinco. Isso depende do projeto e do arquiteto. Só falta aparecer uma tetrabeira, uma pentabeira, hexabeira... Haja telhado! E lá vai eu inventando também. (na foto acima de Thelmo Lins, a sala da Fazenda União, do século XIX, em Belmiro Braga MG)
          Embora essa expressão falada no Brasil não tenha nada a ver com a expressão portuguesa original, quem não tem eira e nem beira significa hoje que é uma pessoa está é numa miséria danada ou na linha da pobreza mesmo. E nada a ver com adornos no telhado de casas.

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